segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

obscenidade

Inicio este blog com uma carta escrita pelo cineasta iraniano Jafar Panahi, divulgada pelo cineasta brasileiro Silvio Tendler, com tradução feita por Ana Luiza Baesso.

Perseguido pelo poder ditatorial de seu país, Jafar Panahi foi condenado a seis anos de prisão e proibido de fazer filmes ou viajar para o exterior nos próximos 20 anos. Durante a eleição presidencial de 2009, Panahi apoiou o oposicionista Mir-Hossein Mousavi. Em março de 2010 foi preso em sua casa em Teerã, ficou detido por 88 dias, fez greve de fome e foi solto após pagar fiança em maio. Sua condenação foi por "ação e propaganda contra o sistema".

Em sua carta às autoridades, Panahi demonstra o seu amor pelo Irã e se mostra indignado pela proibição de praticar sua função de artista e analista de sua sociedade. Leiam:

“Julgar-nos é julgar todo o cinema social iraniano”

Ilmo. Sr. Juiz, permita-me apresentar minha defesa em duas partes distintas.

Primeira parte: o que se diz

Nos últimos dias, revi vários de meus filmes preferidos da história do cinema, embora grande parte de minha coleção tenha sido confiscada durante o ataque à minha residência, ocorrido na noite de 19 de fevereiro de 2009. Na verdade, o Sr. Rassoulof e eu estávamos rodando um filme do gênero social e artístico quando as forças que alegavam fazer parte do Ministério da Defesa, sem apresentar nenhum mandado de busca oficial, a um só tempo nos prenderam, bem como a todos os nossos colaboradores, e confiscaram todos os meus filmes, que nunca me foram restituídos posteriormente. A única alusão feita a esses filmes foi a do juiz de instrução do processo: “Por que essa coleção de filmes obscenos?”

Gostaria de esclarecer que aprendi meu ofício de cineasta inspirado por esses mesmos filmes que o juiz chamava de “obscenos”. E, acredite, não sou capaz de entender como um adjetivo como esse possa ser atribuído a tais filmes, assim como sou incapaz de compreender como se pode chamar de “delito de opinião” a atividade pela qual hoje querem me julgar. Julgam-me, na verdade, por um filme que ainda
não tinha nem o seu primeiro terço rodado quando fui preso. O senhor certamente conhece a expressão que diz que pronunciar apenas metade da frase “não existe nenhum deus além do grande Deus” é sinônimo de blasfêmia. Então, como se pode julgar um filme antes mesmo que ele esteja pronto?

Não sou capaz de entender nem a obscenidade dos filmes da História do cinema nem a acusação que é proferida contra mim. Julgar-nos é julgar todo o cinema engajado, social e humanitário iraniano; o cinema que pretende se posicionar para além do Bem e do Mal, o cinema que não julga e que não se põe a serviço do poder e do dinheiro, mas que dá o melhor de si para apresentar uma imagem realista da sociedade.

Acusam-me de ter desejado promover o espírito de tumulto e de revolta. No entanto, ao longo de toda a minha carreira de cineasta, sempre me declarei um cineasta social e não político, dotado de preocupações sociais e não políticas. Nunca desejei atuar como um juiz ou um procurador; não sou cineasta para julgar, mas para fazer enxergar; não pretendo decidir pelos outros nem prescrever-lhes o que quer que seja. Permita-me repetir minha intenção de posicionar meu cinema para além do Bem e do Mal. Esse tipo de engajamento sempre custou caro a meus colaboradores e a mim mesmo. Sofremos os prejuízos da censura, mas é a primeira vez que se condena e prende um cineasta para impedi-lo de fazer seu filme. Também pela primeira vez é feita uma perquisição na casa do referido cineasta e sua família é ameaçada enquanto ele passa uma “estadia” na prisão.

Acusam-me de ter participado de manifestações. A presença de câmeras era vetada durante essas reuniões, mas não se pode proibir que cineastas participem delas. Minha responsabilidade enquanto cineasta é observar para, um dia, manifestar o que vi.

Acusam-nos de ter começado as filmagens sem solicitar a autorização do governo. Devo esclarecer que não existe nenhuma lei promulgada pelo Parlamento que se refira a tais autorizações. Na verdade, existem apenas circulares interministeriais, que mudam à medida que mudam os vice-ministros.

Acusam-nos de ter começado as filmagens sem apresentar o roteiro aos atores do filme. Nosso modo de fazer cinema, que recruta principalmente atores não profissionais, adota essa prática costumeiramente. Tal acusação me parece muito mais um produto do humor deslocado do que do setor jurídico.

Acusam-me de ter assinado petições. De fato, assinei uma petição na qual 37 dos nossos mais importantes cineastas declaravam sua inquietação quanto à situação do país. Infelizmente, em vez de ouvir esses artistas, acusam-nos de traição; e, no entanto, os signatários dessa petição são justamente as pessoas que sempre reagiram primeiro às injustiças do mundo todo. Como desejam que eles permaneçam indiferentes ao que acontece dentro de seu próprio país?

Acusam-me de ter fomentado manifestações no festival de Montreal; essa acusação não se baseia em lógica alguma, já que, enquanto diretor do júri, eu estava em Montreal havia apenas duas horas quando as manifestações começaram. Sem conhecer ninguém na cidade, como eu poderia ter organizado tais eventos? Talvez não se faça um esforço para lembrar mas, durante esse período, nossos compatriotas se reuniam a fim de manifestar suas exigências.

Acusam-me de ter participado de entrevistas com as mídias de língua persa de fora do meu país. Mas não existe nenhuma lei proibindo tal ato.

Segunda parte : o que eu digo

O artista representa o espírito observador e analista da sociedade à qual ele pertence. Ele observa, analisa e procura apresentar o resultado disso em forma de obra de arte. Como se pode acusar e incriminar quem quer que seja em função de seu espírito e de sua maneira de enxergar as coisas? Tornar os artistas improdutivos e estéreis é sinônimo de destruir todas as formas de pensamento e de criatividade. O ataque efetuado à minha residência e a minha prisão e a de meus colaboradores representam o ataque do poder contra todos os artistas do país.

A mensagem transmitida por essa série de ações me parece bem clara e triste: quem não pensa como nós se arrependerá…

Finalmente, gostaria também de lembrar ao Tribunal outra ironia que diz respeito a mim: o espaço dedicado a meus prêmios internacionais no museu de cinema de Teerã é maior que minha cela penitenciária.

Seja lá como for, eu, Jafar Panahi , declaro solenemente que, apesar dos maus-tratos que ultimamente tenho sofrido de meu próprio país, sou iraniano e quero viver e trabalhar no Irã. Amo meu país e já paguei o preço por esse amor. No entanto, tenho outra declaração a acrescentar à primeira: sendo meus filmes provas irrefutáveis disso, eu declaro acreditar profundamente na observância das leis “dos outros”, da diferença, do respeito mútuo e da tolerância – a tolerância que me impede de julgar e de odiar. Não sou tomado de ódio nem mesmo pelos meus interrogadores, porque reconheço minha responsabilidade para com as gerações futuras.

A História com “H” maiúsculo é muito paciente; as pequenas histórias passam diante dela sem se dar conta de sua insignificância. De minha parte, preocupo-me com essas gerações futuras. Nosso país está muito vulnerável e somente a instauração do Estado de direito para todos, sem nenhuma consideração étnica, religiosa ou política, pode nos preservar do perigo bem real de um futuro próximo caótico e fatal. Em minha opinião, a tolerância é a única solução realista e honorável a esse perigo iminente.

Com meus sinceros respeitos, Ilmo. Sr. Juiz
Jafar Panahi, Cineasta Iraniano

3 comentários:

  1. É triste ver que ainda hoje coisas desse tipo acontecem, mesmo tendo inúmeros exemplos como esse na história, e até muito piores. Percebe-se que a História (ciência) parece ainda não ser suficiente para ensinar ao ser humano sobre ele mesmo. É pra isso que ela serve, mas ainda somos uma espécie tão limitada intelectualmente que sempre vai ter quem não aprenda a lição.

    A arte, como forma de representação da realidade, serve, muitas vezes, para ensinar a história de uma época de uma forma que possa ser melhor entendida por todos e por isso é sempre tão perseguida por governos totalitários, como já foi na Alemanha, na China, no Brasil e em tantos outros, como o Irã.

    É por isso que não dá pra não se interessar por política. Quando ninguém se interessa por ela, aparece alguém para se interessar por todos os outros e tomar atitudes desse tipo. Lamentável!

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  2. Esse tema da influência dos governos totalitários na cinematografia dos países daria uma ótima pesquisa! :)

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  3. Taí, anote para uma possível pesquisa futura! ;)

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