quarta-feira, 6 de abril de 2011

artigo para O Globo

Reproduzo um texto que escrevi para o caderno Prosa & Verso, do jornal O Globo. Publicado no dia 12 de março de 2011, o artigo se refere a uma geração que trabalha com a crítica de cinema ao mesmo tempo em que tenta emplacar filmes no circuito brasileiro. Este tema também é o do livro-reportagem que escrevi para concluir o curso de Jornalismo da PUC-SP. Clique aqui para ler o livro.

Os críticos-cineastas e o novo cinema brasileiro, por Letícia Mendes

No início da primeira década do século 21, saindo de um panorama dominado por Walter Salles e Fernando Meirelles e no qual a crítica dos grandes jornais estava voltada à prestação de serviços, surge uma geração de jovens cinéfilos cariocas que assumiria um duplo papel de reflexão e produção cinematográfica no Brasil. Esses críticos-cineastas criaram referências fundamentais na crítica do audiovisual brasileiro e renovaram a maneira de fazer filmes no país, vinculando o pensamento à imagem do cinema.

Em 1998, nasce a revista eletrônica Contracampo, tendo como editores o jornalista Ruy Gardnier e Eduardo Valente, estudante de cinema da UFF. A publicação surgia de uma insatisfação com a crítica feita à época na universidade e na grande mídia, cada uma à sua maneira em descompasso com as questões consideradas mais urgentes por essa nova geração. Desavenças fizeram com que parte da equipe se retirasse da revista para fundar em 2006 a Cinética.

Os nomes reunidos em torno das duas publicações dariam início a uma produção cinematográfica logo acolhida e reconhecida em festivais internacionais. A premiação em Cannes de Um Sol Alaranjado, de Valente, em 2002 pode servir de marco dessa nova filmografia, construída por autores que se aproximavam no perfil — a formação crítica e universitária — e na busca por um outro modelo de produção e criação, com baixos orçamentos e trabalho cooperativo. Um grupo formado pelo próprio Valente, Felipe Bragança, Cléber Eduardo, Daniel Caetano e muitos outros, cujos filmes travam um diálogo pouco visto no Brasil com o que há de mais instigante na produção internacional contemporânea e são eles mesmos espaço de reflexão sobre o cinema.

Em sua primeira ida a Cannes, Valente - que também exibiria lá Castanho (2003) e O Monstro (2005) -, se deparou com mais aspirantes a cineastas vindos de lugares muito diferentes, que estavam vivendo o mesmo momento, com o primeiro ou segundo filme, saindo da universidade, sem saber se realmente seriam diretores de cinema. Em 2009, lançou seu primeiro longa-metragem, No Meu Lugar, com roteiro de Felipe Bragança. Apesar de ter filmes prestigiados, hoje Valente se considera mais crítico do que cineasta.

Já Bragança se diz primeiramente um cineasta, apesar de ser convidado por muitos diretores, como o cearense Karim Aïnouz (O Céu de Suely), para escrever roteiros. Felipe foi redator da Contracampo e participou do projeto da Cinética. Também dirigiu três curtas (Por dentro de uma gota d'água, 2003; O Nome Dele (o clóvis), 2004; e Jonas e a Baleia, 2006) e está em fase de divulgação de sua trilogia intitulada Coração no Fogo, sobre a representação da juventude brasileira atual, cujos filmes são A Fuga da Mulher Gorila, vencedor da mostra Aurora em Tiradentes em 2009, A Alegria e Desassossego.

Por meio de um convite de Valente, o jornalista Cléber Eduardo começou a escrever para a Contracampo ao mesmo tempo em que seguia sua carreira como crítico de cinema de grandes revistas. Porém, enveredou-se para a direção de filmes por conta da influência de sua mulher, a cineasta Ilana Feldman, com quem dirigiu os curtas Almas Passantes – um percurso com João do Rio e Charles Baudelaire (2008) e Rosa e Benjamin (2009). Atualmente, Cléber é curador da Mostra de Tiradentes, dá aulas em universidades paulistas e trabalha em projetos de filmes, inclusive ao lado de seus alunos. Também amigo de Valente, o cineasta Daniel Caetano escreveu para as duas revistas virtuais e organizou os livros Cinema Brasileiro 1995-2005 (2005) e Serras da Desordem (2008). Há anos batalha para realizar seus filmes, mas,enquanto os editais não concretizam esse desejo, trabalha como crítico e professor. Em 2007, Daniel lançou seu primeiro longa-metragem co-dirigido durante a faculdade, Conceição – autor bom é autor morto, lançado somente agora em DVD. No momento, ele está filmando seu novo curta com o título de O velho e o novo.

Assim, surge do ramo da crítica de cinema uma nova geração de cineastas teóricos. Dessa turma de jovens críticos nasceram grandes diretores que renovam a maneira de fazer filmes no Brasil vinculando o pensamento à imagem do cinema. Muitas dessas produções são feitas com baixo orçamento ou talvez com nenhum investimento, entretanto ganham cada vez mais destaque internacional. Alguns críticos das revistas virtuais Contracampo e Cinética refletem sobre quase toda a produção mundial e também colocam suas ideias em prática. Os críticos-cineastas reutilizam a palavra na imagem, com abordagens inusitadas e densas. Os nomes citados acima fazem parte do contexto atual do cinema brasileiro. Todos eles estavam presentes na 14ª Mostra de Tiradentes, realizada entre 21 e 29 de janeiro deste ano, seja na curadoria, lançando filmes ou na mediação de debates.

Todos viraram críticos-cineastas por acaso. Ninguém nasceu sabendo que trabalharia com isso, apesar de a cinefilia sempre ter corrido pelas veias. Todos também estão com o futuro aberto. Não têm certeza se vão dirigir filmes ou fazer críticas para o resto da vida. O trabalho que eles propõem é fascinante, além de expandir a noção do que é a crítica de cinema: escrever, realizar mostras e festivais, fazer filmes, ser curador, dar aulas. De certa forma, tornou-se um modo de agir dentro desse meio, com critérios e metas que visam questões estéticas e críticas. Ainda é raro encontrar cineastas brasileiros que tenham sua formação na cinefilia. Estes críticos-cineastas servem de modelo para as futuras gerações, como também já tiveram o exemplo em outros pioneiros da história do cinema brasileiro.

LETÍCIA MENDES é jornalista, autora de "Críticos-Cineastas – perfis da geração Contracampo e Cinética" (inédito)

Nenhum comentário:

Postar um comentário